Público, 1994/04/19
Os «Filhos da madrugada» por eles próprios
O duplo CD, o resultado prático do maior projecto ligado à área musical jamais concretizado no nosso país, está quase na rua. Apreciações estabelecidas (ver edição do PÚBLICO do passado domingo), falta ouvir os participantes sobre as suas contribuições. E, já agora, sobre o próprio Zeca Afonso e a sua herança. Os depoimentos aqui reunidos foram extraídos do vídeo realizado sobre como foi elaborado o projecto, que virá a ser transmitido por um dos canais televisivos nacionais. Alguns são reverentes, outros talvez menos. Curiosa é, no entanto, a relação que estes músicos e grupos (a maioria), uma ou duas gerações mais novos que as obras que vieram agora interpretar, mantêm com o autor que as trouxe à rua.
GNR
«Coro dos tribunais»
«É mesmo a primeira vez que nos metemos numa destas! Sendo sincero, não somos fãs do Zeca Afonso, na generalidade do grupo. Há respeito (...), mas não somos dos que pertencem à `linha dura'. Até cheguei a ser irreverente, estava o senhor muito doente, levei cacetada nos jornais na altura: anunciei-lhe uma morte prematura num espectáculo no Rock Rendez-Vous. Nessas coisas sou um pouco iconoclasta, acho que as pessoas têm o respeito que devem ter. Ele realmente tem um grande nome na música mundial, não necessita daquele: `Ai, o Zeca!!!'»
Sétima Legião
«Cantigas do Maio»
Ricardo Camacho: «Sou suficientemente velho para ter conhecido o Zeca pessoalmente. Toquei com ele uma vez, numa colectividade aqui em Lisboa, ali para a Ajuda, sem PA, com megafone (...). Estava muito longe de imaginar que um dia viria a fazer uma versão de uma das canções dele. Foi a primeira vez que fizemos versões, e é muito bom começar pelo Zeca, porque é o maior compositor de música popular deste século. Cria uma responsabilidade adicional, porque não se pode recriar um tema do Zeca. São canções que exigem algum respeito. Cada um respeita-o à sua maneira».
Censurados
«O que faz falta»
João Ribas: «Em geral, as letras do Zeca Afonso e dos Censurados têm uma ligação (...), na contestação e na intervenção. Eu, que a cantei, digo que é como uma letra dos Censurados, quase!»
Fred: «Nós baseávamo-nos muito no que nos fazia falta. Quando fazíamos as músicas que fazíamos e cantávamos as letras que cantávamos, tínhamos essa preocupação de dizer às pessoas que nos ouviam `o que faz falta'.»
Delfins
«Vejam bem»
Miguel Ângelo: «Neste tipo de colectâneas há sempre algumas alternativas. Ou trazíamos esta canção do Zeca Afonso para o universo dos Delfins, no sentido tradicional do que são os Delfins, ou -- o que nos aliciou mais -- partíamos para outro universo, diferente do do Zeca Afonso e, até, do grupo. Neste caso foi uma incursão do grupo no território da música ambiental, da música de dança, e uma maneira, para nós, muito agradável de trabalhar.»
Fernando Cunha: «Em relação a esta experiência, quisemos ir mais longe, quisemos fazer uma fusão entre o conceito que vinha do `Ser maior', dos anos 70, talvez, com a música de dança, que era uma ideia que vinha de trás.»
Mão Morta
«O avô cavernoso»
Adolfo Luxúria Canibal: «Está a contar-se um segredo que convém que ninguém entenda e que ninguém saiba, ou antes, que a gente saiba, mas que não se saiba. (...) Na segunda parte, abrimos. As coisas já podem ser ditas, vociferadas, gritadas aos quatro ventos, porque já passou, e não passou. Penso que a letra está perfeitamente actual, mas noutra perspectiva. O que é certo é que já se pode gritá-la».
Sitiados
«A formiga no carreiro»
João Marques: «A nossa versão é um bocado apanhar o original e depois dar-lhe mais vivacidade (...)».
João Aguardela: «A escolha foi bem feita, a canção tem bastante a ver connosco (...), não foi preciso debater uma estratégia para fazer aquilo, fez-se naturalmente!»
«É difícil mexer em tudo o que o Zeca Afonso fez; as canções são muito perfeitas, muito acabadas. Custa e é difícil mexer naquilo».
Resistência
«Chamaram-me cigano»
Pedro Ayres de Magalhães: «Esta canção era (...) a que eu assobiava quando era puto, e gostava imenso, e depois tem a ver também com toda a letra, que respira duma grande fantasia, dos bruxedos, que penso que pertencem ao nosso imaginário».
«(...) Depois de gravarmos vinte e tal canções não tínhamos nenhuma guitarrada, no verdadeiro sentido do termo, e aproveitámos o ensejo para fazer uma guitarrada a sério, com solos por todo o lado, feitos por toda a gente».
Ritual Tejo
«Canto moço»
Paulo Costa: «Ao gravarmos este tema tentámos afastar-nos um pouco daquilo que é o nosso esquema de gravação (...) e procurámos fazer uma coisa mais orgânica».
Fernando Martins: «Joga a favor, por uma questão de espontaneidade, podermos ter mais liberdade em termos de expressão e interpretação, mas é um bocado pesado, porque o Zeca Afonso foi o Zeca Afonso e (...) é um pouco complicado estarmos a funcionar nesse sentido: corremos o risco de estar a falar de uma coisa que não sabemos».
Frei Fado D'El Rei
«Que amor não me engana»
Cristina Bacelar: «Penso que procurámos esta música essencialmente pelo seu intimismo, por toda a simplicidade melódica que tem e, sobretudo, pela mensagem.»
«(...) Quando se começa a tocar guitarra, uma das melodias que se procura é exactamente uma das melodias de Zeca Afonso. Eu não queria que isto fosse interpretado pela banalidade, mas pela simplicidade com que são feitas».
UHF
«A morte saiu à rua»
António Manuel Ribeiro: «Esta canção é tão forte -- é uma bandeira do Zeca Afonso -- que agarrar nela e fazer o que ele tinha feito era impossível e mau para nós. Então fizemos uma leitura. Sem menosprezar a música, acho que as palavras desta canção são fantásticas. Então, preocupei-me bastante em pô-las cá fora (...), em criar uma nova interpretação para cada vocábulo, cada substantivo. No fundo, fazer um bocado o que os UHF têm feito várias vezes, sacando a interpretação o mais possível para o nosso lado (...)».
Essa Entente
«Senhor arcanjo»
Paulo Salgado: «Penso que ambiente que a gente dá na canção também se insere na letra. Há um certo lado irónico, exagero que damos a certos aspectos musicais. Aquele início é um bocado esgotado no imaginário americano...»
«A versão foi apurada no concurso..., não deve haver muitos trabalhos que tenham dado tanto a volta.»
Madredeus
«Maio maduro Maio»
Teresa Salgueiro: «O Zeca tem músicas muito bonitas e esta é uma delas. Havia outras, mas escolhemos esta!»
Francisco Ribeiro: «Fomos fiéis ao tom. A versão é mesmo Madredeus, um arranjo simples.»
Peste & Sida
«O homem da gaita»
Luís Varatojo: «Este projecto até é bom para o pessoal da nossa geração, e mesmo para os mais novos virem a conhecer o trabalho dele, porque a maioria, se calhar, não iria preocupar-se em ouvir Zeca Afonso. Mas como até gostam das bandas que estão envolvidas, vão acabar por conhecê-lo através delas.»
João Cardoso: «Esta canção (...) tem muito a ver com o que o Zeca tinha na música dele: uma capacidade crítica enorme, e de fazer canções maravilhosas, que dão um prazer do caraças ouvir (...)».
Diva
«Canção de embalar»
Natália Casanova: «De certa maneira, subvertemos o andamento da música. (...) Na primeira parte, o conceito é Zeca Afonso, embora tenha qualquer coisa de Diva, mas achámos que o final era o expoente da música. É realmente a parte mais importante, que, no fundo, desperta mais as emoções das pessoas. Depois de ouvir a canção de embalar vêm todas as sensações».
Brigada Vítor Jara
«Ronda das mafarricas»
Aurélio Malva: «Em relação ao nosso tema -- cuja letra até não é do Zeca, é do António Quadros, embora não deixe de ter a grande marca dele, pela vertente musical --, acabou por ser um estímulo para nós, porque mostra o sentido de fazer música de raiz tradicional, procurar novas sonoridades. Ao fim e ao cabo, um pouco seguindo o exemplo do Zeca.»
Xutos & Pontapés
«Coro da Primavera»
Tim: «Dentro dos Xutos nunca tínhamos tocado Zeca Afonso, como aliás nunca tocámos músicas de outras pessoas (...)».
«A primeira aproximação, a primeira lembrança que temos do Zeca Afonso ao participar no projecto foi o `Coro da Primavera'.»
Kalu: «Tentámos manter a linha vocal o mais parecida possível, respeitar aqueles coros! A parte rítmica mudou bastante: é muito forte, muito actual.»
Sem comentários:
Enviar um comentário