
Homenagem junta 20 grupos de várias áreas da música nacional
«Filhos da Madrugada», o álbum de homenagem a José Afonso, saíu finalmente do segredo dos deuses. Só estará à venda no próximo dia 27, mas o PÚBLICO apresenta-o hoje em antecipação. E das surpresas às meras confirmações nele incluídas, permite-se apresentá-lo como uma aposta ganha.
Há muito que se fala dele. «Filhos da Madrugada», o álbum em que vinte grupos da música pop nacional prestam homenagem a Zeca Afonso, um dos maiores, talvez o maior, compositor e intérprete da música popular do nosso país. Será também o maior projecto alguma vez tentado no nosso meio musical, partindo de uma iniciativa conjunta de Manuel Faria, Tim e João Gil, e que finalmente acabou por receber apoio de uma grande multinacional instalada no nosso país, bem como da organização de «Lisboa 94, Capital da Cultura». Um evento que vem comemorar não só a obra de José Afonso, mas também os 20 anos da Revolução de Abril, de que este foi um dos porta-vozes antes, e depois, dela acontecer.
Disponível a partir de 27 de Abril, no formato de um duplo CD, «Filhos da Madrugada» reúne a «nata» da nossa música actual: dos GNR aos Opus Ensemble, dos Censurados aos Madredeus, dos Mão Morta à Brigada Vítor Jara.
Há algum material previsível, mas, na sua maioria, as canções estão bem conseguidas, o que faz desta uma aposta ganha, não só pela reconhecida qualidade dos originais, como por uma média de interpretações bastante acima do aceitável. Há mesmo algumas surpresas, como a interpretação de «Os índios da meia praia», pelas Vozes da Rádio, um novo grupo oriundo do Porto constituído apenas por vocalistas, que se estreia aqui nas lides discográficas, e que pela amostra, deixa bastantes promessas no ar. Há também a versão de «Vejam bem» pelos Delfins, que optaram aqui por uma incursão num campo próximo da «ambient-house» de tendência britânica, misturando ambiências de música electrónica com um tom dramático já habitual neles. E «Cantigas do Maio», que a Sétima Legião injectou de rítmicas étnicas, ao jeito que já se apontava em alguns temas do seu último álbum, «O Fogo». E ainda «O avô cavernoso», que os Mão Morta reconverteram em estilo ameaçador, aliás como já tinham feito com «Visões-Ficções (Nostradamus)» de António Variações.
Depois há as versões que não são particularmente surpreendentes no seu formato, mas que demonstram óptimas interpretações e arranjos de bom gosto, que constituem a maioria do material aqui incluído. Neste caso estão a de «Maio Maduro Maio» pelos Madredeus, com a voz de Teresa Salgueiro num registo diferente do habitual, ou «A formiga no carreiro» que se adaptou extremamente bem ao imaginário dos Sitiados, aqui com um naipe instrumental (flauta, percussões, violino, e teclas) que lhes veio conferir uma dimensão alargada. Os Tubarões também conseguiram uma boa interpretação, adaptando o conhecido «Venham mais cinco» aos seus peculiares ritmos africanos e transformando o tema num imparável tema de baile. Os Xutos & Pontapés, por sua vez, tomaram por seu o «Coro da Primavera» absorvendo o seu pendor épico e devolvendo-o envolto numa torrente de electricidade bem a seu jeito. O mínimo que se pode dizer é que ficou poderoso.
Consagrados "diferentes"
Há mais vertentes. Uma é a da facção pop-rock de pendor mais ou menos grandioso, onde se podem incluir os Entre Aspas com a sua reconversão de «Traz outro amigo também», os Ritual Tejo com «Canto moço», o tema cujo primeiro verso deu origem ao nome do disco, ou os UHF com uma versão retórica de «A morte saíu à rua». Outra é a das aparentes contradições, como as que se podem estabelecer entre «Era um redondo vocábulo», que os Opus Ensemble transformaram num instrumental de dramatismo neo-clássico para fechar o CD 1, e um tema carregado de irreverência como «O homem da gaita», que os Peste & Sida não terão tido grande dificuldade em adaptar ao seu próprio imaginário. Ou aquela que aparentemente opõe a Brigada Victor Jara, e a sua versão de pendor tradicional para «Ronda das mafarricas» ao interventivo e «pesadão» «O que faz falta», particularmente bem adaptado ao estilo dos Censurados. Mas mais que demonstrar uma incoerência entre os participantes, estas disparidades só vêm reforçar a ideia de riqueza e variedade inerente ao próprio património de José Afonso, que a maior parte dos presentes só teve de escolher e adaptar às suas próprias características. Quase se poderia dizer que nele se encontravam todas as pequenas sementes que, germinando, resultaram na variedade de opções possíveis de encontrar na música nacional dos nossos dias.
No campo dos grandes consagrados, caso dos GNR e Resistência, é curioso verificar que as suas interpretações têm «um não sei quê» que não os faz afastar demasiado das suas próprias premissas, mas que também não é meramente uma transposição dos seus próprios tiques para a música de José Afonso. No caso dos primeiros, o «Coro dos tribunais», funciona como uma espécie de anti-clímax «à lá» GNR, onde é perfeitamente reconhecível a sonoridade do grupo, e as características mordazes da canção -- fortemente ligadas ao estilo da escrita de Reininho --, mas que depois demonstra um desfasamento quase propositado da intenção marcadamente comercial a que os GNR nos habituaram nos últimos tempos, e que a canção obviamente não tem. Por seu lado, os Resistência aproveitaram «Chamaram-me cigano», tema sem grande carga ideológica, para porem as suas guitarras acústicas à desgarrada, o que dá uma sensação de muito maior gozo e liberdade por parte dos próprios músicos que acaba por se transmitir para quem ouve. O aparato ideológico, que por muitas vezes tornou a sua música demasiado pomposa, é assim praticamente afastado, distanciando-se esta interpretação do imaginário habitual do grupo, apesar de, como acontece com os GNR, pela sua sonoridade o tema ser imediatamente reconhecível como tocado por ele.
Curiosa é também a facção que, apesar de ser integrada por músicos de uma geração muito posterior à de Zeca Afonso, de alguma forma se lhe aproxima nos propósitos de junção entre a tradição e a modernidade. É o caso dos Frei Fado D'El Rei e a sua versão de «Que amor não me engana», dos Essa Entente, (os dois grupos vencedores do concurso levado a cabo para recolha de participações de bandas menos conhecidas) com «Senhor Arcanjo», ou os Diva com «Canção de embalar», que conseguiram um efeito conciso e eficaz, juntando elementos destes dois pólos por vezes antagónicos (poder-se-ia acrescentar-se-lhes ainda os Sitiados e mesmo os Madredeus ou a Sétima Legião).
«Grândola Vila Morena», talvez o tema mais conhecido de Zeca Afonso, e que de certo modo serve como um símbolo para o próprio 25 de Abril, é o «bónus» aqui incluído regravado por uma multidão que envolveu elementos da maior parte dos grupos, em conjunto com o Coro Infantil de Santo Amaro de Oeiras. Não tem a dimensão épica e grave do original, sobretudo porque se notam alguns desfasamentos entre os solistas intervenientes, mas ainda assim não deixa de ter alguma graça.
O resultado destes 44 dias de gravações, 20 de misturas e mais de dois anos de planeamento é assim vincadamente positivo, o que se não permite fazer previsões semelhantes para outros projectos do género -- muitas vezes mais aparato que resultados --, pelo menos desta vez significou uma homenagem condigna a uma das mais figuras que mais o merecia: José Afonso.
Jorge Dias / Público, 18/04/1994
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