domingo, 20 de março de 2011

A montanha afinal não pariu um rato


Homenagem junta 20 grupos de várias áreas da música nacional

«Filhos da Madrugada», o álbum de homenagem a José Afonso, saíu finalmente do segredo dos deuses. Só estará à venda no próximo dia 27, mas o PÚBLICO apresenta-o hoje em antecipação. E das surpresas às meras confirmações nele incluídas, permite-se apresentá-lo como uma aposta ganha.

Há muito que se fala dele. «Filhos da Madrugada», o álbum em que vinte grupos da música pop nacional prestam homenagem a Zeca Afonso, um dos maiores, talvez o maior, compositor e intérprete da música popular do nosso país. Será também o maior projecto alguma vez tentado no nosso meio musical, partindo de uma iniciativa conjunta de Manuel Faria, Tim e João Gil, e que finalmente acabou por receber apoio de uma grande multinacional instalada no nosso país, bem como da organização de «Lisboa 94, Capital da Cultura». Um evento que vem comemorar não só a obra de José Afonso, mas também os 20 anos da Revolução de Abril, de que este foi um dos porta-vozes antes, e depois, dela acontecer.

Disponível a partir de 27 de Abril, no formato de um duplo CD, «Filhos da Madrugada» reúne a «nata» da nossa música actual: dos GNR aos Opus Ensemble, dos Censurados aos Madredeus, dos Mão Morta à Brigada Vítor Jara.

Há algum material previsível, mas, na sua maioria, as canções estão bem conseguidas, o que faz desta uma aposta ganha, não só pela reconhecida qualidade dos originais, como por uma média de interpretações bastante acima do aceitável. Há mesmo algumas surpresas, como a interpretação de «Os índios da meia praia», pelas Vozes da Rádio, um novo grupo oriundo do Porto constituído apenas por vocalistas, que se estreia aqui nas lides discográficas, e que pela amostra, deixa bastantes promessas no ar. Há também a versão de «Vejam bem» pelos Delfins, que optaram aqui por uma incursão num campo próximo da «ambient-house» de tendência britânica, misturando ambiências de música electrónica com um tom dramático já habitual neles. E «Cantigas do Maio», que a Sétima Legião injectou de rítmicas étnicas, ao jeito que já se apontava em alguns temas do seu último álbum, «O Fogo». E ainda «O avô cavernoso», que os Mão Morta reconverteram em estilo ameaçador, aliás como já tinham feito com «Visões-Ficções (Nostradamus)» de António Variações.

Depois há as versões que não são particularmente surpreendentes no seu formato, mas que demonstram óptimas interpretações e arranjos de bom gosto, que constituem a maioria do material aqui incluído. Neste caso estão a de «Maio Maduro Maio» pelos Madredeus, com a voz de Teresa Salgueiro num registo diferente do habitual, ou «A formiga no carreiro» que se adaptou extremamente bem ao imaginário dos Sitiados, aqui com um naipe instrumental (flauta, percussões, violino, e teclas) que lhes veio conferir uma dimensão alargada. Os Tubarões também conseguiram uma boa interpretação, adaptando o conhecido «Venham mais cinco» aos seus peculiares ritmos africanos e transformando o tema num imparável tema de baile. Os Xutos & Pontapés, por sua vez, tomaram por seu o «Coro da Primavera» absorvendo o seu pendor épico e devolvendo-o envolto numa torrente de electricidade bem a seu jeito. O mínimo que se pode dizer é que ficou poderoso.

Consagrados "diferentes"

Há mais vertentes. Uma é a da facção pop-rock de pendor mais ou menos grandioso, onde se podem incluir os Entre Aspas com a sua reconversão de «Traz outro amigo também», os Ritual Tejo com «Canto moço», o tema cujo primeiro verso deu origem ao nome do disco, ou os UHF com uma versão retórica de «A morte saíu à rua». Outra é a das aparentes contradições, como as que se podem estabelecer entre «Era um redondo vocábulo», que os Opus Ensemble transformaram num instrumental de dramatismo neo-clássico para fechar o CD 1, e um tema carregado de irreverência como «O homem da gaita», que os Peste & Sida não terão tido grande dificuldade em adaptar ao seu próprio imaginário. Ou aquela que aparentemente opõe a Brigada Victor Jara, e a sua versão de pendor tradicional para «Ronda das mafarricas» ao interventivo e «pesadão» «O que faz falta», particularmente bem adaptado ao estilo dos Censurados. Mas mais que demonstrar uma incoerência entre os participantes, estas disparidades só vêm reforçar a ideia de riqueza e variedade inerente ao próprio património de José Afonso, que a maior parte dos presentes só teve de escolher e adaptar às suas próprias características. Quase se poderia dizer que nele se encontravam todas as pequenas sementes que, germinando, resultaram na variedade de opções possíveis de encontrar na música nacional dos nossos dias.

No campo dos grandes consagrados, caso dos GNR e Resistência, é curioso verificar que as suas interpretações têm «um não sei quê» que não os faz afastar demasiado das suas próprias premissas, mas que também não é meramente uma transposição dos seus próprios tiques para a música de José Afonso. No caso dos primeiros, o «Coro dos tribunais», funciona como uma espécie de anti-clímax «à lá» GNR, onde é perfeitamente reconhecível a sonoridade do grupo, e as características mordazes da canção -- fortemente ligadas ao estilo da escrita de Reininho --, mas que depois demonstra um desfasamento quase propositado da intenção marcadamente comercial a que os GNR nos habituaram nos últimos tempos, e que a canção obviamente não tem. Por seu lado, os Resistência aproveitaram «Chamaram-me cigano», tema sem grande carga ideológica, para porem as suas guitarras acústicas à desgarrada, o que dá uma sensação de muito maior gozo e liberdade por parte dos próprios músicos que acaba por se transmitir para quem ouve. O aparato ideológico, que por muitas vezes tornou a sua música demasiado pomposa, é assim praticamente afastado, distanciando-se esta interpretação do imaginário habitual do grupo, apesar de, como acontece com os GNR, pela sua sonoridade o tema ser imediatamente reconhecível como tocado por ele.

Curiosa é também a facção que, apesar de ser integrada por músicos de uma geração muito posterior à de Zeca Afonso, de alguma forma se lhe aproxima nos propósitos de junção entre a tradição e a modernidade. É o caso dos Frei Fado D'El Rei e a sua versão de «Que amor não me engana», dos Essa Entente, (os dois grupos vencedores do concurso levado a cabo para recolha de participações de bandas menos conhecidas) com «Senhor Arcanjo», ou os Diva com «Canção de embalar», que conseguiram um efeito conciso e eficaz, juntando elementos destes dois pólos por vezes antagónicos (poder-se-ia acrescentar-se-lhes ainda os Sitiados e mesmo os Madredeus ou a Sétima Legião).

«Grândola Vila Morena», talvez o tema mais conhecido de Zeca Afonso, e que de certo modo serve como um símbolo para o próprio 25 de Abril, é o «bónus» aqui incluído regravado por uma multidão que envolveu elementos da maior parte dos grupos, em conjunto com o Coro Infantil de Santo Amaro de Oeiras. Não tem a dimensão épica e grave do original, sobretudo porque se notam alguns desfasamentos entre os solistas intervenientes, mas ainda assim não deixa de ter alguma graça.

O resultado destes 44 dias de gravações, 20 de misturas e mais de dois anos de planeamento é assim vincadamente positivo, o que se não permite fazer previsões semelhantes para outros projectos do género -- muitas vezes mais aparato que resultados --, pelo menos desta vez significou uma homenagem condigna a uma das mais figuras que mais o merecia: José Afonso.

Jorge Dias / Público, 18/04/1994

terça-feira, 8 de março de 2011

Brindes do Passado

Com algum tempo de atraso, como é vulgar e de bom tom acontecer neste cantinho lusitano, a moda das homenagens chegou a Portugal. É verdade que por cá não abundam nomes de peso, vivos ou não, que justifiquem tais iniciativas, nem o necessário conhecimento de causa da parte de muitos dos celebrantes. Era preciso procurar mitos, artistas que povoassem o imaginário musical português, capazes de reunir o consenso e atrair tanto os jovens leões como os veteranos. Mas não foi preciso procurar muito. Assim, a jeito e com a estatura mínima pretendida, dois nomes se destacavam à partida, um deles já falecido, o outro ainda vivo e alvo de adoração do povo português: José Afonso e Amália Rodrigues.

O primeiro teve honras de grande acontecimento, através da edição do duplo contendo versões de canções suas, pelos Filhos da Madrugada, designação genérica que englobou praticamente todos os grupos mais conhecidos da pop nacional, mas deixou de fora pessoas que conviveram de perto e tocaram com o autor do «Coro dos Tribunais». Amália foi, para já, objecto de homenagem mais modesta, por parte de Dulce Pontes, que lhe repescou uma série de fados e adaptou o título de um deles para o seu próprio álbum, «Lágrimas». Por sinal, também José Afonso foi arrastado na corrente, aproveitando Dulce Pontes para homenagear de uma penada dois artistas cuja obra, ideologia e personalidade não poderiam ser mais opostos.

Enquanto isso, no Seixal, por ocasião das festas de Corroios, alguém se lembrou de editar um «Especial José Afonso: bandas de música moderna do concelho do Seixal interpretam José Afonso», disco que, curiosamente, não teve o mesmo sucesso de vendas que o dos Filhos da Madrugada. É que não se percebe muito bem o que têm grupos como os Oboé, Nível de Vida, Dixit, Últimos Suspeitos, Quatro++1, Tropa de Choque, Irmãos de Sangue e O Incesto a menos que os GNR, UHF, Sétima Legião, Resistência, Delfins, Madredeus, Peste & Sida, Mão Morta ou Sitiados!

O terceiro homenageado do ano foi outro falecido, António Variações, personagem controversa, ao contrário das outras duas, e, em vida, incómoda para muitos. Foi logo nos primeiros meses de 1994 que os nomes do costume decidiram juntar-se para umas «Variações» em torno deste artista, que adorava Amália, afirmava estar «entre o Minho e Nova Iorque» e misturava nas suas canções preocupações existenciais com uma vertente sonora electropop que, até hoje, permanece como uma das propostas mais originais da música popular feita em Portugal. Assim, aos especialistas nas homenagens, Delfins (Miguel Ângelo foi dos primeiros a compreender e a «apropriar-se» da música do cantor-barbeiro), Ritual Tejo, Madredeus, Resistência, Sitiados e Mão Morta, juntaram-se Sérgio Godinho, Isabel Silvestre, Santos e Pecadores (bela designação para uma hipotética banda do homenageado...) e Três Tristes Tigres, num álbum que recupera temas dos álbuns «Anjo da Guarda» (1983) e «Dar e Receber» (1984), os únicos que Variações editou em vida.

Foi pois no fundo do baú que muita gente andou a remexer nas raízes perdidas. Num tempo de vacas gordas em termos de vendas (para o qual contribuiu em grande parte a aposta -- ganha -- na exportação, por algumas multinacionais) para a música portuguesa, a que correspondeu um tempo de crise, em termos de aparecimento de novos valores (exceptuando a saudável investida das editoras independentes que apresentaram propostas de grande valor como as dos Bizarra Locomotiva, U-Nu ou Tina & The Top Ten, entre outras), investiu-se na bolsa dos valores seguros e na celebração de um classicismo que, inspirado nos tempos áureos da MPP ao longo das décadas de 60 e 70, ganhou novo eco na facção pop.

Nesta corrida ao passado encontrou muita gente o fôlego providencial para o relançamento de carreiras em risco de estagnação. Para outros, terá sido verdadeiramente uma sentida homenagem. Para outros ainda, o mero oportunismo e o embarque à última da hora no comboio da jogada comercial. Fossem quais fossem as intenções de cada um, ninguém pode negar, porém, a este fenómeno, das homenagens, uma virtude: a de trazer a música dos mestres para o convívio das gerações mais novas, provocando nelas, como já aconteceu nalguns casos (Paulo Bragança ou a própria Dulce Pontes, por exemplo) o desejo de retomar e actualizar a tradição.

Fernando Magalhães / Público, 27/12/1994